Yours, Cher

Com ele fico satisfeita.
E eu nunca fico satisfeita com nada.

Como pode alguém ser capaz de nos trazer este tipo de prazer? Este sentimento de encaixe quase perfeito, que nos trama o ser e me deixa - a mim - sem vontade? Tiras-me a fome, o sono e o gosto em ser solteira. Não que sejamos comprometidos, mas não consigo parar de os comparar a todos contigo. E não evito a admiração que sinto ao aperceber-me do quão imprestável são eles ao teu lado. Não percebo, não me cabe na cabeça. Não sei quando é que isto aconteceu, quando é que passei de perder apostas, a perder-me para ti. Porquê que conversar contigo é tão confortável, e porquê que conhecer-te tem sido o maior desafio da minha vida? E como se não bastasse, tens um raio de uma aparência de bradar aos céus. Sim, porque esse carisma todo já não chegava. Mas, ao fim e ao cabo, não sei se te quero ou se te uso, e a indecisão mata-me. E se tenho que morrer, que não seja de outra forma.

O mundo escorre-lhe na tela como sangue fluído nas veias. O pincel, como uma arma, perspicaz e letal. Manchas de tinta, línguas e histórias preenchem rapidamente os espaços em branco. Disseram-me um dia que a arte era a forma de corrupção mais bela do nosso ser. Os nossos desejos pintados, escritos por nós e interpretados por outros, na sua forma original. A arte é a representação da realidade aos olhos de cada um, é aquilo por que lutamos. Arte é guerra, é paixão, é equilíbrio, é revolução - do corpo, da mente. A arte sou eu de roupa interior e descalça, sentada à tua mesa a beber café sem açúcar enquanto escrevinho selvaticamente no meu pequeno bloco de notas, desenhada por várias vezes nos teus muitos rascunhos, agora guardados no fundo do caixote do lixo. Tudo isto porque a arte não se esquece, é uma semente discretamente plantada no teu subconsciente. Quando dás por ti estás completamente agarrado, dependente. Seja de um quadro, de um pequeno caderno de folhas acastanhadas ou de mim. A arte estranha-se e sem sequer nos apercebermos, entranha-se.

I'm not in love with you.
I'm in love with the idea of you.
If it's any consolation, you're the best idea I've ever had.
I'm sorry.

Ainda não conseguia acreditar que tínhamos mesmo alinhado naquele plano idiota que fizéramos na universidade. Éramos miúdas ambiciosas com sonhos gigantes e possibilidades relativamente pequenas, mas cá estávamos nós, num apartamento recentemente nosso. A vista era maravilhosa e a companhia sublime. Irmãs unidas por brincadeiras do destino sem nenhuma experiência em cuidarem delas próprias. Havíamos de nos arranjar. As malas ainda estavam espalhadas pelo chão e a comida de plástico e o café eram os nossos melhores amigos de momento. A busca por emprego aliava-se aos nossos muitos passeios pela cidade e visitamos tudo aquilo que o olhar consegue alcançar, e um pouco do que não pode. Rapidamente fomos aceites pelos sítios onde não deveríamos estar, como já se tornava hábito. Mas não estávamos satisfeitas, nunca estivemos. Os nossos cigarros transformavam-se em nuvens e ideias e vícios. A nossa casa era o mundo, toda e qualquer parte, ruas e vielas, janelas e portas sempre abertas, campos e prédios, piscinas, praias e corações de chocolate. Então fizemos as malas e abrimos caminho para a estrada, à procura de um lugar na fila da frente da vida.

Não quero que vás embora sussurrou-me depois de acordarmos daquele sonho vivo. Fiquei. AM estava a tocar em plano de fundo e nunca percebera o seu fascínio por discos vinil ao invés de CD's até àquela tarde. Rolou para cima do meu tronco e ficamos cercados por um olhar de desejo pesado. Quis perguntar-lhe o que o fizera mudar de ideias sobre mim, perder a sensação de que eu não era suficiente. Estar ali fora sempre tudo o que eu quisera mas a esperança morrera à tanto tempo quanto me lembrava. No entanto ali estava ele, ele mesmo, a dizer que me amava e ali estava eu, sem conseguir articular palavras e com o ritmo cardíaco mais acelerado que o carro descontrolado da minha mãe. Respondi-lhe com um beijo que sabia a pouco mas que o fez sorrir como um louco. Amava-o com todos os poros do meu corpo e cada um deles o queria perto, mais perto: pele na pele, mãos entrelaçadas e línguas que sabem correr. Os seus dedos passaram pelo meu lábio inferior, acariciando-o. Confia em mim repetiu-me tantas vezes quantas consegui contar; a minha respiração era ofegante e ansiosa e cerrei os olhos, incrédula. És a maior prova da minha realidade, senti-lhe a voz e o corpo, desculpa ter duvidado

Iluminado pela lua encarcerada na janela do teu quarto, o meu corpo delineava-se nas paredes para que estas se enchessem de vida. Não havia vento, mas o vestido de verão que trazia escorregava-me pela pele, caindo mudo no chão. Alma em carne viva, doce tragédia, paixão imediata. Olhavas agora o meu corpo nu com uma admiração fluída, como quem aprecia um quadro. Ténue, suave, polido. Tentei mover-me, mas detiveste-me levantando a mão. Querias ver-me, disseras, decorar-me. Eu seria a tua primeira imagem. Tudo à minha volta estava empestado com o teu odor, e embora não me tocasses, arrepiavas-me e sentia-te correr por mim com os olhos que deviam ser lábios. Vi-me então em ti, pintavas-me nos olhos com cores ainda por descobrir. Disseste que todos os meus sinais se alinhavam para ti como constelações num universo que nunca se desleixa, e que já ouviras as estrelas conspirar sobre nós. Aproximaste-te e o ar ficou quente, e ao teu toque senti-me queimar. Corpos são esculturas, explicaste, e cobriste-me a pele com as tuas mãos; num céu coberto por estrelas.

Era mais um dia, pedi café enquanto tentava não congelar. As mãos afundavam-se nos bolsos à procura de trocos e a vida tinha decidido ser amarga. Queria eu juntar-me a ela e apunhalá-la pelas costas mal tivesse uma chance. Mas ali estavas tu. Tal como em todas as semanas anteriores, sentada na mesa mais afastada, a escrevinhar no teu bloco de notas, com o teu cabelo castanho caramelo apanhado num rabo de cavalo, a beber café preto como se nada no mundo te pudesse incomodar. De alguma forma fazias-me sempre sentir melhor de cada vez que te via. A meu ver já eras parte da mobília do bar, e mesmo assim não conseguia levar-me a dizer-te um olá. Estavas sempre tão bonita, inatingível, sozinha. Não sei se bonita é a palavra certa, porque és um pouco como a arte, e a arte é só arte, e bonita é tão pequeno para arte, sabes? Assustavas-me ao início, mas agora intrigavas-me, como a arte faz. Queria saber o teu nome, o porquê de sorrires tão abertamente a todas as pessoas novas que ali entravam - eu próprio fui alvo de um desses sorrisos e deve ser essa razão de cá vir todos os dias, porque o café nem é assim tão bom, um bocado doce de mais para o meu gosto - e o que escrevias. Talvez eu queira um sorriso a mais do que os outros, ou tornar-me artista. Sorri, e dobrei o papel amarrotado em quatro, guardando-o na mala. Levantei-me e sentei-me ao lado dele. Pedi a segunda chávena de café - desta vez o doce de mais - e deixei-me ser arte.